A alguns anos atrás eu finalmente me estabeleci financeiramente e sai da casa
dos meus pais em busca da minha vida própria. Eu acabei achando um apartamento
para mim em um condomínio de pequenos prédios aqui em São Paulo. São vários
prédios de três andares, com dois apartamentos por andar. É um apartamento
confortável de dois quartos e eu ainda moro nele.
Eu acabei conhecendo alguns dos meus vizinhos já logo no dia da mudança. Alguns
estavam curiosos para ver quem era o cara novo e alguns vieram ver se podiam
ajudar com algo. O pessoal daqui é bem amigável um com o outro.
Já no primeiro dia desempacotei as minhas coisas, que não eram muitas, e comecei
a arrumar a casa ao meu gosto. Já tinha escurecido e eu estava acabando de
arrumar tudo quando eu comecei a ouvir uma música bem baixinha e suave tocando.
Era um solo de sax. Não é o meu tipo de música, sou um cara mais puxado para o
rock, mas até que estava muito boa!
Resolvi que já era hora de encerrar o dia e descansar um pouco. Me esparramei no
meu sofá, que seria a minha cama pelos próximos meses, e comi uma pizza ao som
baixo daquele sax tocando.
Como eu dormia na sala no começo, eu acabei notando que o som do sax vinha do
apartamento do lado do meu. A parede da sala era a divisória entre os dois
apartamentos. Então eu simplesmente deitava de noite e se eu tivesse sorte,
dormia ouvindo aquela sax tocando.
A música era tão boa, que quando eu ouvia ela, eu desligava tudo que fazia
barulho para poder ouvir melhor, afinal era bem baixa e quase não dava para
ouvir. Eu imaginei que o meu vizinho tivesse algum tipo de sala acusticamente
vedada para não incomodar os outros e poder tocar em paz.
Mas tinha algo de estranho naquele sax tocando, o que ele tinha de tão bom, ele
tinha de triste e melancólico. Eu adorava ouvir aquele som, mas sentia toda uma
tristeza por trás dele.
Um dia resolvi perguntar para o porteiro do condomínio quem é que morava no
apartamento do lado do meu, e ele falou que ninguém morava lá já fazia muito
tempo. Ele falou que os donos do apartamento pagavam todas as contas em dia, mas
não iam lá, não vendiam e não alugavam o apartamento. Eu perguntei o por que, e
ele falou que não sabia. Ele também falou que algumas pessoas do condomínio já
tinham tentado entrar em contato com os donos do apartamento para ver se eles o
vendiam, mas nunca ninguém conseguia falar com eles. Estranhices a parte, eu
continuei com a minha vida.
Um dia eu estava na minha sala e ouvi aquele sax triste tocando de novo. Não
pensei duas vezes, pulei do sofá e fui tocar a campainha do vizinho para ver
quem estava lá. Ninguém atendeu. Eu toquei de novo e nada. Bati na porta e nada
de novo. Encostei a orelha na porta e não ouvi nada. Silêncio absoluto lá
dentro. Voltei para o meu apartamento e ouvi o sax tocando. Corri para o
corredor do lado de fora do apartamento e coloquei o ouvido na porta do vizinho.
Nada. Silêncio completo. Voltei para o meu apartamento e ouvi de novo o som
daquele sax tocando. Encostei o ouvido na parede e ouvi o sax. Eu tinha certeza
que estava vindo do apartamento do lado. Corri lá para fora mais uma vez,
encostei o ouvido na porta e nada. Nesse momento eu decidi que provavelmente o
som não vinha de dentro do apartamento, devia ser algum efeito acústico que
fazia o som de algum outro lugar parecer que vinha de lá, quando eu estava na
sala do meu apartamento.
A vida continuou e a música também. De tempos em tempos o sax tocava e eu
relaxava na sala, no escuro ao som daquela música melancólica e triste que
parecia fazer os meus problemas desaparecerem.
Algum tempo depois eu acabei fazendo amizade com o pessoal aqui do condomínio e
conversa vai e conversa vem quando um dia eu resolvi descobrir quem era que
tocava sax no condomínio. Eu esbarrei com um cara e depois de um pouco de papo
furado, eu perguntei se ele sabia quem tocava sax por aqui. Ele falou que pelo
que ele sabia ninguém tocava, e ele conhecia praticamente todo mundo por aqui.
Alguns dias depois estava falando com outro cara e fiz a mesma pergunta, para
ouvir a mesma resposta. Eu cheguei a perguntar para mais umas três pessoas, e
ninguém sabia de alguém que tocava sax no condomínio ou na vizinhança ao redor,
já que quando alguém toca sax é uma coisa que se dá para ouvir de longe.
Até que um dia de manhã eu estava saindo para trabalhar quando uma garota de uns
17 anos falou para mim "Você é o cara que quer saber quem toca saxofone, né? Eu
sei quem é, mas você provavelmente não vai acreditar em mim." Antes que eu
pudesse perguntar alguma coisa para ela, ela entrou no carro da mãe dela e foi
para a escola. Eu não dei bola, afinal era só uma garota de 17 anos que devia
estar querendo tirar um sarro da minha cara.
Depois de uns 5 minutos no trânsito, já nem lembrava mais dela.Depois de um dia
cansativo de trabalho eu voltei para casa. Quando estava estacionando o carro,
lá veio a garota e mais dois amigos com ela. Ela falou "Então, você quer saber
quem é que toca saxofone?" Eu estava cansado, mas um pouco curioso. E foi essa a
história que ela me contou:
Tinha um cara, no final da década de 70, que estava morando no apartamento do
lado do meu, ele era o dono do apartamento, e ele tinha um saxofone. Ele estava
tentando fazer a vida como músico, no que ele era muito bom. Quando ele tocava o
saxofone, todo mundo parava para ouvir. Dava a impressão que ele tocava com a
alma, era como se ele e o saxofone fossem um só. Só que a música que ele tocava
não era triste, era apaixonante. As coisas não estavam indo às mil maravilhas
para ele, mas ele tinha casa própria, tinha um carro, fazia algo que ele tinha
paixão em fazer, e tinha o amor da vida dele. Era uma mulher muito bonita, que
amava muito ele, e que adorava ver ele tocar o saxofone. Ele falava que ela era
a musa inspiradora dele. Os dois estavam para casar, quando um dia ele recebeu
uma noticia que literalmente acabou com ele. A noiva dele tinha morrido em um
acidente de carro. Falaram que a batida foi tão violenta que ela morreu na hora.
O cara entrou em uma depressão tão séria que a família dele começou a ficar
muito preocupada com ele. Ele quase não saía de casa, não estava comendo, não
queria falar com ninguém. A única coisa que ele fazia era tocar aquele saxofone,
mas o som que saía, por mais belo e apaixonante que fosse, refletia toda a
tristeza que ele estava sentindo. Com o tempo ele foi tocando cada vez menos,
mas sempre que tocava todos os moradores do condomínio paravam para ouvir aquela
triste melodia. O tempo foi passando e a saúde dele foi piorando. Um dia o irmão
dele apareceu para ver como ele estava, para ver se conseguia alegrar ele um
pouco. Mas o que ele viu deixou ele chocado. O saxofonista estava somente uma
sombra do que ele já tinha sido. Estava magro, barba malfeita, com um olhar
triste e o apartamento estava uma bagunça. O irmão dele tentou levantar a moral
dele, dar uma arrumada no apartamento, mas de nada adiantou. Depois de um bom
tempo conversando com ele, o irmão dele foi embora. Algumas semanas depois
encontraram o corpo dele no chão da sala. Falaram que ele morreu porque
simplesmente parou de comer, não se cuidava e chegou a um ponto em que o corpo
simplesmente desistiu. No final as pessoas falaram que a causa da morte foi um
coração partido. Alguns poucos falam que a alma dele ainda está naquele
apartamento, tocando o saxofone, lamentando a morte da sua amada e refletindo
isso nas notas melancólicas e tristes, mas simplesmente apaixonantes da sua
música eterna.
Outro dia um senhor que mora aqui desde que construíram o condomínio confirmou a
história do saxofonista, de que realmente morou um no apartamento do lado do meu
e falou que o apartamento agora é do irmão do saxofonista. Não se sabe porque
ele não quer alugar ou vender o apartamento, mas o fato é que já fazem muitos
anos que ele está fechado.
Eu já tentei gravar a música do sax, mas ela é tão baixa que o meu gravador não
consegue pegar nada.
Hoje em dia já não quero mais descobrir a origem da música, se é algum efeito
sonoro, ou se é o eco de algum outro mundo. Eu estou satisfeito em simplesmente
deitar na sala e relaxar na melancolia daquela melodia.
Victor - São Paulo - S.P.